STF, STJ e os Julgamentos que Moldam o Brasil: Uma Análise Completa dos Casos Lula, Bolsonaro e 8 de Janeiro
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) passou de um tribunal visto como distante do cidadão comum para um ator central na vida política brasileira. Suas decisões deixaram de ser meras interpretações constitucionais e passaram a alterar o rumo de eleições, determinar prisões e redefinir os limites entre poderes. Esse protagonismo, que para alguns é necessário, para outros é sinal de excesso de poder, fica evidente em três grandes eixos: a anulação das condenações de Luiz Inácio Lula da Silva, os processos contra Jair Bolsonaro e os julgamentos relacionados aos ataques de 8 de janeiro de 2023.
Para entender a dimensão dessas decisões, é preciso primeiro compreender o papel das cortes superiores, as diferenças entre STJ e STF e como cada uma atua em matéria penal.
STJ e STF: Entre Técnica e Constitucionalidade
O Brasil possui duas cortes superiores com funções distintas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é conhecido como “Tribunal da Cidadania”. Sua função é uniformizar a interpretação da lei federal — Código Penal, Código de Processo Penal, Código Civil e outras normas infraconstitucionais. O STJ não reexamina provas, mas decide se a lei foi aplicada corretamente, garantindo isonomia entre decisões de tribunais regionais.
O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, é o guardião da Constituição Federal. Sua função é analisar se houve violação de princípios constitucionais, como o devido processo legal, o juiz natural, a ampla defesa e a liberdade de expressão. O STF atua em ações diretas de inconstitucionalidade, mandados de segurança, habeas corpus e recursos extraordinários — sempre quando existe um ponto de natureza constitucional.
Na teoria, o STJ é a última instância técnica e o STF só atua quando há clara violação à Constituição. Na prática, o STF tem assumido cada vez mais processos penais de grande repercussão, revisando decisões do STJ e instruindo inquéritos contra autoridades, o que gera uma disputa silenciosa de protagonismo entre as cortes.
Caso Lula: Da Condenação à Elegibilidade
Lula foi condenado em dois processos pela 13ª Vara Federal de Curitiba: o caso do tríplex do Guarujá (pelo então juiz Sérgio Moro) e o caso do sítio de Atibaia (pela juíza Gabriela Hardt). As condenações foram confirmadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e revisadas pelo STJ, que apenas reduziu a pena no primeiro caso.
A virada ocorreu em março de 2021. O ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, decidiu de forma monocrática anular todas as condenações por entender que a 13ª Vara de Curitiba era incompetente para julgá-las, já que os casos não tinham relação direta com a Petrobras. Fachin determinou a remessa para a Justiça Federal do Distrito Federal.
Em abril de 2021, o plenário do STF confirmou a decisão por oito votos a três, devolvendo a Lula os direitos políticos e permitindo que ele disputasse a eleição presidencial de 2022.
Quem Foram os Ministros e Como Votaram
| Ministro | Voto | Indicado por | Formação / Especialidade |
|---|---|---|---|
| Edson Fachin (relator) | A favor | Dilma Rousseff | Professor e doutor em Direito Civil (PUC-SP), especialista em Constitucional e Agrário. |
| Alexandre de Moraes | A favor | Michel Temer | Doutor em Direito do Estado (USP), ex-ministro da Justiça; especialista em Constitucional e Administrativo. |
| Cármen Lúcia | A favor | Luiz Inácio Lula da Silva | Doutora em Direito do Estado, professora de Direito Constitucional. |
| Rosa Weber | A favor | Dilma Rousseff | Juíza de carreira, ex-ministra do TST, especialista em Direito do Trabalho. |
| Dias Toffoli | A favor | Luiz Inácio Lula da Silva | Ex-Advogado-Geral da União, especialista em Constitucional e Eleitoral. |
| Gilmar Mendes | A favor | Fernando Henrique Cardoso | Doutor em Direito Constitucional (Universidade de Münster, Alemanha), ex-Advogado-Geral da União. |
| Ricardo Lewandowski | A favor | Luiz Inácio Lula da Silva | Professor de Direito Constitucional, mestre e doutor pela USP. |
| Luiz Fux (presidente à época) | A favor | Dilma Rousseff | Desembargador de carreira, professor de Processo Civil e presidente da comissão do novo CPC. |
| Luís Roberto Barroso | Contra | Dilma Rousseff | Professor de Constitucional (UERJ), advogado e especialista em Direitos Fundamentais. |
| Marco Aurélio Mello | Contra | Fernando Collor | Magistrado de carreira (TST), conhecido por perfil garantista. |
| Kassio Nunes Marques | Contra | Jair Bolsonaro | Desembargador federal (TRF-1), especialista em Direito Público. |
Essa decisão não declarou Lula inocente. Apenas restaurou sua presunção de inocência, anulando o processo por vício de competência. Politicamente, foi o ponto de virada que permitiu sua volta ao cenário eleitoral.
Caso Bolsonaro: Primeira Turma no Centro das Decisões
Os processos contra Jair Bolsonaro no STF envolvem acusações de incitação a golpe de Estado e participação em atos que teriam incentivado os eventos de 8 de janeiro de 2023. Essas ações são julgadas pela Primeira Turma do STF, composta por:
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Alexandre de Moraes (relator) – Indicado por Michel Temer em 2017, doutor em Direito do Estado (USP), ex-ministro da Justiça. É o magistrado mais ativo em inquéritos sobre ataques à democracia e desinformação.
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Flávio Dino – Indicado por Lula em 2024, ex-juiz federal, ex-ministro da Justiça e ex-governador do Maranhão.
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Luiz Fux – Indicado por Dilma Rousseff em 2011, desembargador de carreira, professor de Processo Civil e ex-presidente do STF.
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Cármen Lúcia – Indicada por Lula em 2006, professora de Constitucional, reconhecida por independência e rigor técnico.
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Cristiano Zanin – Indicado por Lula em 2023, advogado de carreira, defensor de Lula na Lava Jato, especialista em Constitucional e Processual.
A presença de três ministros indicados por Lula gera críticas de parcialidade, mas juridicamente não há impedimento automático. A Constituição presume a imparcialidade dos ministros e cabe à defesa apresentar pedidos de suspeição com base em fatos concretos.
O Papel de Alexandre de Moraes
Um ponto sensível é o duplo papel exercido por Alexandre de Moraes. Ele atua como relator, conduzindo o inquérito, determinando diligências, prisões e quebras de sigilo, e depois participa do julgamento de mérito. O STF foi alvo dos ataques de 8 de janeiro, o que faz de Moraes vítima institucional e juiz ao mesmo tempo. As defesas alegam que isso fere o princípio do juiz imparcial e do sistema acusatório, previsto no artigo 129 da Constituição, que separa funções de investigação, acusação e julgamento.
O STF responde que a relatoria é atribuição regimental e que as decisões são colegiadas, submetidas ao contraditório, não configurando parcialidade automática. Ainda assim, a discussão é relevante e pode impactar a percepção pública de justiça.
O Voto de Luiz Fux
O ministro Luiz Fux se destacou ao apresentar um voto com tom mais garantista. Fux afirmou que, embora os eventos de 8 de janeiro fossem gravíssimos, a responsabilização penal exige provas diretas de participação nos atos executórios de tentativa de golpe. Segundo ele, manifestações políticas, ainda que inflamadas, não são suficientes para configurar o crime sem vínculo causal comprovado.
Seu voto foi pela absolvição de Bolsonaro da acusação de tentativa de golpe, mas reconheceu outras responsabilidades e medidas de contenção. Esse posicionamento reforçou a importância da individualização da conduta e do respeito ao devido processo legal.
8 de Janeiro: O STF Como Tribunal de Massa
Os ataques de 8 de janeiro resultaram em milhares de prisões. Alexandre de Moraes centralizou os processos no STF, inclusive de pessoas sem foro privilegiado. O argumento foi evitar decisões conflitantes e garantir uniformidade na punição de crimes contra o Estado Democrático de Direito.
O resultado foi a transformação do STF em tribunal de primeira e única instância para centenas de pessoas. As penas têm variado de 12 a 17 anos de prisão. Juristas criticam a supressão do duplo grau de jurisdição, que é princípio básico de justiça, e o risco de sobrecarregar o Supremo com tarefas de instrução processual.
A Qualificação dos Ministros e a Sabatina
Para ser ministro do STF, a Constituição exige apenas notável saber jurídico e reputação ilibada. Não há exigência de experiência prévia como juiz criminal. Muitos ministros são professores ou advogados. A sabatina no Senado é predominantemente política, sem avaliação profunda do conhecimento técnico penal.
Essa característica explica parte das críticas de que o STF, ao julgar casos criminais complexos, não é a instância mais adequada para instrução de provas, mas sim para revisão constitucional.
Reflexão Final
O STF tornou-se ator central da política brasileira. Suas decisões moldam eleições, definem rumos de investigações e podem alterar o equilíbrio de poderes. A tensão com o STJ é evidente: o STJ é mais técnico e menos politizado, mas tem sido superado pelo STF quando este entende haver violação constitucional.
A decisão que devolveu a Lula os direitos políticos foi juridicamente fundamentada, mas politicamente decisiva. O julgamento de Bolsonaro e a condução dos processos de 8 de janeiro mostram que o Supremo acumulou funções de investigador, juiz e guardião da democracia.
Para o futuro, o desafio é equilibrar o papel constitucional do STF com a preservação da imparcialidade e da confiança pública. Reformas que limitem o foro privilegiado, fortaleçam as instâncias inferiores e tornem mais técnica a escolha de ministros podem devolver ao Supremo o papel de corte constitucional, reduzindo sua atuação como tribunal penal de massa e garantindo maior legitimidade às suas decisões.
Sobre Edson Fachin
Antes de ser nomeado para o Supremo Tribunal Federal em 2015, Edson Fachin já era uma figura conhecida no meio jurídico e acadêmico, especialmente por sua atuação em temas de direito civil, agrário e constitucional. Em entrevistas e publicações, destacou seu interesse histórico pela reforma agrária e pela função social da terra, o que gerou polêmica durante sua indicação ao STF. Embora tenha manifestado simpatia pelas pautas de movimentos sociais, como o MST, Fachin negou ter sido advogado do movimento e sempre defendeu que manifestações devem ocorrer dentro dos limites da lei e da Constituição.
Fontes e Confirmações
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Projeto Comprova realizou uma checagem em 2022, examinando tuítes que alegavam que Fachin tivesse sido advogado do MST. Projeto Comprova+1
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A entrevista original à DHPAZ (2014) é confirmada como genuína. Fachin fala de sua vida acadêmica, de sua ligação com questões sociais e da reforma agrária, mas nega ter sido advogado do MST. Poder360+1
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O curriculum que Fachin apresentou ao Senado quando foi sabatinado em 2015 também não menciona nenhuma atuação como advogado do MST. Projeto Comprova+1
Trechos Confirmados das Falas de Fachin em 2014 (Entrevista DHPAZ)
Aqui vão as falas literais ou bem próximas do original, com contexto:
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“... quando entrei na universidade e posterior trabalho como advogado, acabei me ligando à questão da terra e à luta pela reforma agrária.”
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Nesse trecho, Fachin reconhece que, como estudante e advogado (na fase anterior ao STF), teve envolvimento com debates ligados à reforma agrária. Projeto Comprova+1
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“... fui procurador-geral do Incra em 1985 … participei de cargos no Paraná ligados a terras, cartografia e florestas …”
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Ele faz referência a cargos públicos relacionados ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e trabalho com órgãos estaduais do Paraná ligados à terra, cartografia e florestas. Projeto Comprova+1
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“Algumas dessas ações, em determinados momentos, não obstante que carregue reivindicações legítimas, desbordam da lei. Mas aí … a lei é, evidentemente, o limite desse tipo de manifestação.”
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Aqui ele fala sobre movimentos sociais ou manifestações — ele afirma apoiar reivindicações legítimas, mas ressalva que devem respeitar a legalidade. Projeto Comprova+1
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“Em 1978, escrevi um trabalho sobre partidos políticos no qual minha conclusão foi que o único partido que poderia ser chamado por esse nome era o Partido dos Trabalhadores, que tinha um programa de transformação do Brasil.”
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Esse é um trecho que mostra uma visão política durante sua formação, mas não é afirmação de militância formal ou de advocacia para movimentos. Poder360+1
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O que Fachin Negou / O Que Não Foi Confirmado
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Fachin nega ter sido advogado do MST. Ele afirmou isto explicitamente ao Projeto Comprova. Projeto Comprova+1
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Seu currículo ao Senado e sabatina não registram serviços jurídicos para o MST. Projeto Comprova+1
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O MST também confirmou que nunca teve Fachin como advogado ou atuou formalmente com ele. Projeto Comprova
1. Fontes Acadêmicas e Doutrinárias
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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2013.– Uma das obras mais respeitadas sobre direito constitucional, usada como base no STF.
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MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2023.– Livro de referência que explica competências do STF, STJ e princípios constitucionais.
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2023.– Didático, amplamente utilizado em concursos e faculdades, escrito pelo próprio ministro do STF.
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BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. São Paulo: Saraiva, 2021.– Análise moderna da atuação do STF, direitos fundamentais e ativismo judicial.
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SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.– Ótima base para entender decisões sobre garantias processuais.
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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2023.– Abordagem objetiva, útil para contextualizar competências e funções das cortes.
2. Fontes Institucionais
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Constituição da República Federativa do Brasil (1988)– Disponível no site do Planalto: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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Regimento Interno do STF– Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RegimentoInternoSTF.pdf
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Regimento Interno do STJ– Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Regimento-Interno.aspx
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Portal do STF – Jurisprudência e decisões: https://jurisprudencia.stf.jus.br/
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Portal do STJ – Pesquisa de jurisprudência: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Jurisprudencia.aspx
3. Fontes Jornalísticas e de Checagem
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Agência Brasil – Cobertura oficial e neutra de decisões do STF: https://agenciabrasil.ebc.com.br/
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Poder360 – Cobertura política detalhada: https://www.poder360.com.br/
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Jota Info – Especializada em Judiciário: https://www.jota.info/
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BBC Brasil – Análises internacionais e contexto político: https://www.bbc.com/portuguese
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Projeto Comprova – Checagem de fatos (MST, Lava Jato): https://projetocomprova.com.br/
4. Documentos e Decisões Relevantes
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HC 164.493/PR – Julgamento da suspeição de Sérgio Moro.
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HC 193.726 – Decisão monocrática de Edson Fachin sobre a incompetência da 13ª Vara de Curitiba.
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Sessão Plenária de 15/04/2021 – Confirmação da decisão de Fachin, 8x3.
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Decisões do Inquérito 4921 – Que apura atos antidemocráticos e investiga Bolsonaro e aliados.
Todas essas decisões podem ser acessadas no site do STF (https://jurisprudencia.stf.jus.br/).
5. Fontes Complementares e Entrevistas
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Entrevista DHPAZ de Edson Fachin (2014) – Depoimento histórico, disponível no acervo da Universidade Federal do Paraná.
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Artigos de opinião de ex-ministros (Nelson Jobim, Joaquim Barbosa) sobre ativismo judicial – Folha de S.Paulo, O Globo.
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Livros de História Recente:
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SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
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