O Preço da Polarização: O Que Fica de Fora do Debate Nacional
A polarização política tornou-se um dos traços mais marcantes da democracia brasileira contemporânea. Nas últimas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) saiu do papel de árbitro discreto e passou a ocupar o centro do palco político. Julgamentos que antes ficavam restritos ao noticiário jurídico hoje mobilizam audiências, pautam o debate público e influenciam diretamente o resultado de eleições. O caso das anulações das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2021, e os processos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e os atos de 8 de janeiro de 2023 são exemplos de como a Corte se transformou em um ator central na vida política nacional.
Contudo, enquanto o país se envolve emocionalmente nesses embates, problemas estruturais – que determinam o futuro da economia e o bem-estar coletivo – permanecem sem solução. É essa distração coletiva que representa o verdadeiro “preço da polarização”: um custo social e econômico alto, que se traduz em ineficiência do Estado, aumento de carga tributária e perda de competitividade.
Judicialização da Política e Politização da Justiça
Do ponto de vista teórico, o Brasil é um dos países em que mais se observa a chamada judicialização da política – fenômeno em que temas tradicionalmente resolvidos pelo Legislativo e pelo Executivo passam a ser decididos pelo Judiciário. Essa realidade se explica, em parte, pela Constituição de 1988, que ampliou o rol de direitos fundamentais e deu ao STF a função de guardião da Carta Magna (CANOTILHO, 2013; MENDES et al., 2023).
A judicialização, por si só, não é negativa: pode representar uma garantia contra abusos de poder e uma forma de proteger minorias. O problema surge quando há politização da justiça, isto é, quando decisões judiciais passam a ser lidas – e utilizadas – como instrumentos de luta política. É o que ocorre quando o julgamento de Lula é narrado como uma vitória de uma facção ideológica e não como uma aplicação do princípio do juiz natural, ou quando decisões contra Bolsonaro são vistas como “perseguição política” por seus apoiadores, independentemente de seu fundamento jurídico.
Caso Lula: Anulação das Condenações e Retorno ao Cenário Político
A guinada decisiva aconteceu em março de 2021, quando o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, decidiu de forma monocrática anular todas as condenações de Lula proferidas pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Fachin entendeu que os processos não tinham relação direta com os desvios da Petrobras, núcleo da Lava Jato, e portanto deveriam tramitar em outra jurisdição.
Em 15 de abril de 2021, o plenário do STF confirmou essa decisão por 8 votos a 3. Votaram a favor Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Votaram contra Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello e Kassio Nunes Marques.
Importante destacar que a decisão não declarou Lula inocente, mas restaurou sua presunção de inocência, anulando os processos por vício de competência e determinando que fossem remetidos para a Justiça Federal do Distrito Federal. O efeito político foi imediato: Lula voltou a ser elegível e concorreu às eleições presidenciais de 2022.
Caso Bolsonaro e os Atos de 8 de Janeiro
No extremo oposto do espectro político, Jair Bolsonaro enfrenta processos no STF relacionados a suposta incitação a golpe de Estado e participação indireta nos atos de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas em Brasília.
Esses casos são julgados pela Primeira Turma do STF, composta por Alexandre de Moraes (relator), Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin. A presença de três ministros indicados por Lula (Cármen, Dino e Zanin) gera críticas de parcialidade, mas, juridicamente, não há impedimento automático. A Constituição presume a imparcialidade dos ministros, e cabe à defesa apresentar pedidos de suspeição com base em fatos concretos.
Um ponto controverso é o acúmulo de funções por Alexandre de Moraes, que atua como relator, determina diligências e prisões e participa do julgamento do mérito. Para as defesas, isso viola o princípio do juiz natural e o sistema acusatório previsto no artigo 129 da Constituição. Para o STF, trata-se de cumprimento regimental e garantia de uniformidade na condução de casos que ameaçam a ordem democrática.
O STF como Tribunal de Massa
Os atos de 8 de janeiro também expuseram outro fenômeno: o STF assumiu o julgamento de centenas de réus, inclusive pessoas sem foro privilegiado, transformando-se em tribunal de primeira e única instância. Para alguns juristas, isso restringe o duplo grau de jurisdição e sobrecarrega a Corte com tarefas instrutórias. Para outros, foi medida necessária para evitar decisões conflitantes e dar resposta rápida à gravidade do ataque às instituições.
O Custo da Máquina Pública
Enquanto esses embates ocupam o noticiário, a máquina pública continua cara e ineficiente.
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Câmara dos Deputados: cada deputado custa, em média, R$ 2,5 milhões por ano somando salário, verbas de gabinete, equipe e benefícios (CLP, 2024). A recente aprovação de aumento de 18 cadeiras na Câmara dos Deputados, para adequação ao Censo 2022, adicionará mais de R$ 90 milhões por ano aos cofres públicos, sem contar o efeito cascata sobre assembleias estaduais e câmaras municipais.
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STF: o orçamento anual do Supremo foi de cerca de R$ 850 milhões em 2024 (Portal da Transparência, 2024). Considerando os 11 ministros, o custo médio por cadeira é de R$ 77 milhões/ano, incluindo assessores (cada ministro conta com 30 a 35), estrutura de segurança, manutenção e tecnologia.
Comparativamente, cortes constitucionais de países como Alemanha (Bundesverfassungsgericht) e Reino Unido operam com orçamentos muito menores – cerca de R$ 190 milhões e R$ 88 milhões respectivamente – e número reduzido de processos, pois atuam apenas em questões estritamente constitucionais (LENZA, 2023).
Café, Suco e Impostos
Para tangibilizar o impacto no dia a dia, pense no preço do café e do suco de laranja:
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Café em pó: preço médio de R$ 22,00/kg (IBGE, 2025). Incidência de ICMS (12%), PIS/Cofins (9,65%) e tributos sobre produção. Quase 40% do valor vai para o Estado.
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Suco de laranja integral: preço médio de R$ 9,50/L, com aproximadamente 33% de carga tributária, considerando ICMS, PIS/Cofins e contribuições da cadeia.
Ou seja, ao tomar café da manhã, o cidadão está ajudando a financiar não apenas serviços essenciais, mas também o custo do Legislativo, do Judiciário e de toda a estrutura estatal.
Comparativo Internacional
País / Corte | Nº de Juízes | Orçamento Anual | Custo Médio por Juiz | Processos Anuais |
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Brasil (STF) | 11 | R$ 850 mi | R$ 77 mi | > 70 mil |
EUA (Supreme Court) | 9 | US$ 133 mi (~R$ 660 mi) | R$ 73 mi | ~100 |
Reino Unido (Supreme Court) | 12 | £ 14 mi (~R$ 88 mi) | R$ 7,3 mi | < 100 |
Alemanha (BVerfG) | 16 | € 34 mi (~R$ 190 mi) | R$ 11,8 mi | ~5.000 |
O Brasil não apenas gasta mais por juiz, como julga um volume de processos milhares de vezes maior, evidenciando que o STF acumula funções de corte constitucional e tribunal recursal, além de atuar em primeira instância para autoridades com foro privilegiado.
O Que Fica de Fora
Enquanto o país discute votos de ministros, alguns temas essenciais são empurrados para o segundo plano:
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Reforma tributária simplificada, que poderia reduzir a burocracia e atrair investimentos.
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Reforma administrativa, para cortar privilégios e melhorar a eficiência do Estado.
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Investimento em infraestrutura, para reduzir o custo logístico e aumentar a competitividade.
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Modernização do setor de serviços, responsável por 70% do PIB, mas que ainda tem baixa produtividade.
Essas pautas têm impacto direto no crescimento econômico, na geração de empregos e na qualidade de vida — mas raramente mobilizam a opinião pública com a mesma força que um julgamento no Supremo.
Reflexão Final
A polarização política transformou o Brasil em um país que vive de crises semanais. O preço disso é alto: tempo perdido, energia desperdiçada e problemas estruturais sem solução. O cidadão paga essa conta duas vezes – no imposto embutido no café e no suco que consome e na falta de serviços públicos de qualidade.
Se o país conseguir deslocar parte da atenção que dá às disputas de poder para o debate de reformas estruturais, talvez possamos trocar a sensação de espetáculo permanente por um projeto real de desenvolvimento. Do contrário, continuaremos prisioneiros da cortina de fumaça, discutindo quem ganhou o último embate político, enquanto perdemos oportunidades de construir um futuro melhor.
Referências Bibliográficas
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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2013.
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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2023.
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MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio; BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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Portal da Transparência – Orçamento do STF. Disponível em: https://www.portaltransparencia.gov.br/
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CLP – Centro de Liderança Pública. Custo do Parlamento Brasileiro. 2024. Disponível em: https://www.clp.org.br/
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IBGE. Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA. 2025.